Olhe ao seu redor. Há tantas coisas úteis, cumprindo bem seu papel, atendendo suas necessidades, preservando seus alimentos, protegendo e dando conforto ao seu corpo, fazendo a sua conexão ao mundo digital.
No entanto, no dia a dia, a satisfação no uso dos produtos e com o fato deles poderem continuar úteis por muito tempo é atropelada por vários estímulos que nos convidam a comprar substitutos irresistíveis. A reação é natural numa sociedade em que se deixou de pensar na real necessidade e onde a novidade reserva sempre uma expectativa (ilusória) de ganho de felicidade: “Preciso trocar por um novo”. Estamos habituados a acreditar que não apenas precisamos ter coisas, mas que as coisas não precisam ser usadas até o final de sua vida útil.
Há sempre aquela novidade aparentemente indispensável: um novo celular com câmera de maior resolução, uma nova geladeira que oferece o gelo diretamente na porta. Ou, mesmo se temos sapatos suficientes, aparece a urgência em ter aquele novo modelo que será valorizado na próxima estação.
A lógica da compra pela compra em si, desprovida de um conteúdo de real necessidade, assim como a troca desnecessária de produtos ainda em plena vida útil, alimenta modelos de produção e de consumo que vêm se mostrando crescentemente insustentáveis. Hoje, a humanidade já consome 50% a mais de recursos naturais renováveis do que a Terra consegue repor ou regenerar. E com a entrada, nos países emergentes, de 3 bilhões de novos consumidores no mercado de consumo de massa nos próximos 20 anos, precisaremos de cerca de 4,5 planetas para suprir todo o consumo se mantidos esses mesmos padrões. Assim, é preciso pensar em alternativas que possam, ao mesmo tempo, atender ao nosso bem-estar, respeitar os limites do planeta e atender as necessidades sociais.
Isso implica um novo estilo de vida que, ao contrário do que muitos pensam, não reduzirá o bem-estar conquistado por uma pequena parte da humanidade – aqueles 1 bilhão de pessoas que hoje consomem 78% do total consumido no mundo. Um novo estilo de vida centrado no bem-estar das pessoas e não no consumo de produtos e serviços pelo consumo em si.
Isso não quer dizer, em absoluto, que as pessoas recém-chegadas ao mercado do consumo de massa não poderão consumir. Quer dizer que o modelo de consumo deverá ter seu centro na preocupação com a função desempenhada por um dado produto ou serviço e não no produto em si que supre essa função. A escolha dependerá das condições específicas de cada consumidor, mas de um ponto de vista social e ambiental, melhor será optar por um consumo inteligente, que escolhe o produto ou o serviço de acordo com o bem-estar desejado, que se foca na compra do que é realmente necessário, que usa os produtos enquanto servirem à função desejada, que opta pela troca por um novo produto no momento em que as novas funcionalidades oferecidas forem realmente úteis e desejadas.
Quando uma criança rasga um livro ou quebra um brinquedo, pode aprender a consertá-lo. Com isso, passará a valorizar o que tem e possivelmente tomará mais cuidado em sua preservação. Basta observar uma criança consertando algo para ver o grande prazer nela despertado pela recuperação de seu brinquedo. Hoje, os adultos tendem a fazer um raciocínio exclusivamente de preço para decidir entre consertar e trocar. Nesse raciocínio não está considerado o custo ambiental de uma troca de produto. E não está considerado o fato do conserto utilizar mais mão de obra do que a sua fabricação industrial, o que é bom para a economia e para a sociedade.
A reforma de um móvel enquanto se espera o nascimento de um filho traz em si um significado de cuidado com o próprio filho que vai chegar, muito mais do que a compra de um novo móvel, envolvendo o carinho das mãos que cuidaram da reforma. Contar com os serviços de um sapateiro, de uma costureira do bairro, de um marceneiro pode gerar uma nova vida aos produtos, com muito menor impacto ambiental, e com emprego de mão de obra em uma proporção muito maior do que a compra de um produto industrial novo.
Todas as coisas bem cuidadas terminam por gerar um interesse quando não precisamos mais delas, pois podem ser trocadas num bazar, feira, ou brechó. Ou podem ser doadas, ampliando e fortalecendo os laços comunitários envolvidos na relação entre quem doa e quem recebe, em um exercício de solidariedade.
Na pesquisa do Instituto Akatu “Rumo à Sociedade de Bem-Estar”, as pessoas revelaram preferir produtos duráveis, atualizáveis e consertáveis a produtos baratos e fáceis de substituir. Preferem estar com as pessoas a comprar presentes para elas. Preferem deslocar-se facilmente a ter um carro. Seis em cada dez brasileiros acham que conviver com a família e os amigos é importante para sentir-se feliz.
O consumo de produtos está, nesse caminho, ligado ao atendimento das necessidades das pessoas, à satisfação pelo uso em si. Abre-se espaço, assim, para uma sociedade com estilos mais sustentáveis de vida – e com certeza mais feliz.
Helio Mattar é doutor em Engenharia Industrial pela Universidade Stanford (EUA) e diretor-presidente do Instituto Akatu.
Artigo originalmente publicado na edição nº 36 [abril, maio e junho de 2014] da Revista Rossi.