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31.12.10 às 11:15

Reciclagem permite reaproveitamento de resíduos de laboratório

Chumbo, prata, mercúrio, zinco e outros elementos tóxicos, que antes eram jogados na natureza, estão sendo reutilizados
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Pelo menos oito cidades do norte fluminense sentiram na prática, no início de abril último, os efeitos do descaso de uma indústria com seus resíduos. Durante vários dias, cerca de 600 mil pessoas ficaram sem água potável porque o rio Paraíba do Sul, que abastece essas cidades, foi contaminado pelo derramamento de produtos químicos do reservatório de uma indústria de papel instalada em Cataguases (MG), na divisa com o Rio de Janeiro. A espuma tóxica deixou em seu rastro toneladas de peixes mortos e colocou em alerta entidades ligadas à saúde pública e ao meio ambiente. Acidentes como esse não aconteceriam se fossem tomados os devidos cuidados e a indústria tivesse adotado princípios e metodologias como aquelas utilizadas com sucesso há seis anos pelo Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba.

A constatação de que era necessário estabelecer padrões para descarte e reciclagem dos produtos químicos utilizados para experimentos foi o ponto de partida para o desenvolvimento, em 1997, de um programa de gerenciamento de resíduos químicos e águas servidas naquela unidade. Os resultados já podem ser traduzidos em ganhos ambientais e econômicos. Só no ano passado, cerca de 400 mil litros de resíduos químicos, contendo materiais perigosos, foram reciclados. Entre as substâncias que fazem parte desse montante estão chumbo, prata, mercúrio, cobre, zinco, selênio, bromo, amônia, sulfetos, metanol, acetona e cromo.

Várias delas são reutilizadas nas linhas de pesquisa desenvolvidas no instituto. Segundo os cálculos do engenheiro químico José Albertino Bendassolli, coordenador do Laboratório de Isótopos Estáveis e do programa de gerenciamento de resíduos químicos do Cena, a economia mensal com o reaproveitamento desses produtos se aproxima de R$ 5 mil. “Por ano, são R$ 60 mil, mas, se considerarmos o programa de gerenciamento de água e energia elétrica, poderemos chegar a uma economia anual de R$ 200 mil. Esses exemplos bem-sucedidos podem ser transferidos para outras instituições de pesquisa e ensino”, diz Bendassolli.

Apenas no sistema de produção de água desmineralizada adotado pelo Cena, a economia anual com gasto de água e energia elétrica pode totalizar R$ 140 mil. Pelo processo de destilação convencional – o mais empregado em laboratórios de ensino e pesquisa no país -, para cada litro produzido são consumidos de 15 a 20 litros de água tratada no sistema de refrigeração, sendo que a maioria é descartada após o processo. Pelos cálculos do coordenador do programa, como o Cena consome cerca de 60 mil litros de água destilada por mês, o desperdício mensal seria da ordem de 900 m³, o que representa cerca de 10,8 milhões de litros por ano. E a energia gasta para produzir 1 litro de água destilada gira em torno de 0,7 quilowatt, representando 42 mil quilowatts por mês.

Com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em 2001, por meio do Programa de Infra-Estrutura V, o instituto dimensionou e construiu uma central de produção de água que utiliza basicamente gravidade e pressão. Por esse processo, a água desmineralizada é obtida por troca iônica (resinas trocadoras de cargas positivas e negativas). O líquido da rede de abastecimento público de Piracicaba, do Serviço Municipal de Água e Esgoto (Semae), passa inicialmente por um filtro de carvão ativado e grãos de areia de vários tamanhos e, na seqüência, em grandes colunas de acrílico transparente, contendo resinas, responsáveis pela retenção de cátions (cálcio, magnésio, potássio, sódio e alguns metais pesados) e ânions (cloretos, sulfatos, nitratos, carbonatos, entre outros).

Em seguida, a água passa por um sistema de desinfecção por luz ultravioleta e por filtros de polipropileno com ranhuras de 5 mícrons. “O resultado é que hoje temos 50% das nossas unidades utilizando essa água”, conta Bendassolli. Como alguns ficam distantes da central de produção, onde ela é retirada pelos técnicos em galões, o coordenador do programa acredita que é possível melhorar a distribuição, tornando-a mais eficiente com encanamentos específicos.O trabalho de gerenciamento de resíduos químicos do Cena começou em 1997, no Laboratório de Isótopos Estáveis, local onde se produz a maior quantidade de rejeitos do instituto. O laboratório é responsável por toda a produção nacional de compostos enriquecidos nos isótopos pesados de nitrogênio e enxofre, portanto sem radioatividade, usados principalmente na pesquisa agronômica como traçadores, na avaliação do ciclo de nitrogênio e de enxofre no sistema solo-planta.

Como nos últimos anos houve um aumento do consumo desses compostos, a produção precisou ser ampliada, gerando um maior volume de efluentes químicos e a necessidade de adotar um programa de gerenciamento dos resíduos. O Cena integra, com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq), o campus da USP em Piracicaba. São 37 pesquisadores docentes, cerca de 100 funcionários e 150 alunos de pós-graduação que trabalham em 19 laboratórios de pesquisa.

Bendassolli recorda o início do programa, quando a primeira tarefa já dava idéia do que aguardava a equipe envolvida. Em um depósito aberto, sem nenhum tipo de organização, encontravam-se 5 toneladas de resíduos, precariamente acondicionados e em grande parte sem nenhum tipo de rotulagem. O primeiro passo foi classificar o que dava para identificar. “No total, cerca de 2,1 toneladas do material foram incineradas, porque não foram segregadas na fonte geradora”, conta.

O depósito original foi então remodelado, dentro de critérios rígidos de armazenamento de material, e os resíduos divididos em 11 classes. Bendassolli lembra que, como esse ambiente é um entreposto provisório, o material descartado deve ficar no máximo 120 dias no local. Depois, precisa ser recuperado ou incinerado. Um banco de dados informatizado, desenvolvido pelo Laboratório de Informática do Cena, fornece dados detalhados, quantitativos e qualitativos, dos resíduos estocados e gerados nas linhas de pesquisa e ensino da instituição, além de informações técnicas sobre mais de 200 compostos químicos perigosos. A equipe também produziu um vídeo com os resultados do programa de gerenciamento, apresentado aos grupos que visitam a instituição.

Um resultado importante mostrado aos visitantes é a reciclagem de vários resíduos aquosos contendo produtos perigosos, como cianeto, amônia, sulfeto, bromo e outros. Eles são reciclados e reaproveitados em outras linhas de pesquisa do Cena, enquanto os sólidos, como as lâmpadas fluorescentes, são enviados para uma empresa que faz a reciclagem do mercúrio. Os resíduos de prata, por exemplo, são recuperados e utilizados como óxido de prata em outros processos analíticos. “Esse material é um reagente caro que usamos, por exemplo, na determinação de enxofre em plantas”, conta Bendassolli. Já o cromo é utilizado como dicromato de potássio em vários processos analíticos.

O cobre metálico, usado para retirar o excesso de oxigênio de amostras de solo, sedimentos e plantas antes de passarem pelo espectrômetro de massas, é reciclado em sua forma original. Ao reter o excesso de oxigênio das amostras, o cobre fica oxidado e perde sua função, além de ser tóxico. Para retornar ao cobre metálico, ele passa por um processo conhecido como óxido-redução, que consiste em empregar o hidrogênio a 450° C para retirar o oxigênio. A reciclagem do cobre proveniente de três equipamentos do Cena representa economia anual na importação dessa matéria-prima da ordem de US$ 12 mil.

Embora muitos desses processos sejam convencionais, nem sempre são empregados pelas universidades e mesmo pelas indústrias. “As empresas produzem uma grande quantidade de resíduos, mas em menor variedade. Já a universidade produz menor quantidade, mas a diversidade é muito maior. Nosso objetivo é que os processos desenvolvidos aqui possam ser transferidos”, diz o coordenador do programa. Na sua avaliação, uma maneira de passar adiante esse conhecimento é por meio do curso de graduação de Gestão Ambiental da Esalq, que tem como finalidade formar o administrador do ambiente. Bendassolli é responsável por uma disciplina – que consta da grade curricular de 2005, quando os alunos da primeira turma desse novo curso estiverem no último ano – que aborda a questão de segurança e do tratamento de resíduos químicos em laboratórios. Outra forma de repasse é receber alunos de colégios e faculdades nos laboratórios do Cena.

O Infra V foi dividido em dois grandes módulos: o de tratamento de resíduos químicos e o de centros de informações, incluindo bibliotecas, museus e arquivos. Participam do módulo de resíduos químicos dez laboratórios da USP, três da Universidade Estadual Paulista (Unesp), um da Estadual de Campinas (Unicamp), um da Federal de São Carlos (UFSCar) e um da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp), além do Centro de Controle de Zoonoses da Prefeitura de São Paulo, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e do Centro de Pesquisa Pecuária Sudeste da Embrapa, que receberam no total R$ 4,2 milhões.

Segundo Bendassolli, para que o programa do Cena continue são necessários cerca de R$ 60 mil anuais para material de consumo, manutenção dos equipamentos e desenvolvimento de métodos, além de contratação de pessoal técnico (funcionários exclusivos para o programa). “Como a pesquisa é dinâmica, com experimentos diversos, temos sempre que pensar em metodologias de tratamento para os outros compostos que surgem”, relata Bendassolli. Esse valor representa uma parcela pequena perto do que já foi investido até aqui, cerca de R$ 1 milhão, entre verba da Fapesp, do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex), mantido pelo CNPq, USP e do próprio Cena. Não teria sentido, como diz Bendassolli, depois de tanto esforço e dos resultados apresentados, abandonar o que foi feito.

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