Pensar que o Sudeste pudesse sofrer uma crise hídrica como a atual era inimaginável até pouco tempo atrás. Mas o mito da abundância (mais na edição 84 de Página22), alimentado pelo fato de o Brasil concentrar 12% da água doce do mundo, caiu por terra. Não só porque essa água se encontra mal distribuída no território brasileiro, concentrada principalmente na pouco populosa Região Norte, mas também por uma gestão bastante questionável dos recursos hídricos. Faltou um planejamento que levasse em conta o cenário climatológico e as mudanças ambientais globais, e implantasse medidas de adaptação à mudança climática, informando a sociedade de forma transparente. E faltou, sobretudo, a interligação entre os diversos atores da sociedade para enfrentamento conjunto da situação, denunciando um problema de governança que está por trás da crise (mais na edição 93).
Com o intuito de chamar atenção para o diálogo entre os diferentes setores para o enfrentamento de um problema único, a Revista Página22 e o GVces promoveram o debate Ciência, Empresas, Poder Público: Diferentes realidades hídricas? – dentro do ciclo de eventos Bode na Sala, realizado semestralmente.
O encontro reuniu um público de 138 pessoas no auditório da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, na manhã de 27 de maio. Após assistir aos painéis, o público participou ativamente da conversa em um formato de world café, retroalimentando as considerações finais dos debatedores.
Século XX ou XXI?
O dia começou com uma reflexão trazida pelo coordenador da Rede Clima e pesquisador do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC/Inpe), Paulo Nobre, a respeito de como lidamos com o planeta. Segundo ele, ainda possuímos e praticamos a mentalidade de exploração desenfreada dos recursos naturais elaborada pela sociedade dos anos 1900.
Este é um dos fatores, segundo ele, da atual crise hídrica. Esta mentalidade de afluência e consumo exagerado acabou gerando mudanças no clima, que, por sua vez, prejudicam o abastecimento de água. “Nossa variabilidade hídrica tem sido surpreendente. Nós tivemos duas secas recorrentes, em 2005 e 2010 na Amazônia, cujo tempo de recorrência é de 100 anos. Ou seja, nos próximos 200 anos não devemos ter nenhuma seca, o que significa uma estatística errada”, afirmou.
A “visão de século XX” também foi abordada pelo ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo Fabio Feldmann. “Infelizmente temos uma enorme dificuldade de colocar esses temas [como a crise hídrica] no País, porque a sociedade brasileira ainda tem uma noção equivocada de que nossas questões não estão no presente, e sim no futuro”, afirmou.
Ele vê na crise hídrica um grande efeito didático, ainda mais pelo fato de esta situação estar sendo sentida na pele pela população, de uma forma muito prática. “Não podemos desperdiçar essa crise”, disse. Assim, deve ser encarada como uma oportunidade para estimular o debate sobre sustentabilidade e forçar a classe política colocar o tema dentro de sua agenda, visto que a falta de governança foi outro fator apontado pelos debatedores para a situação do abastecimento ter alcançado um estado quase calamitoso.
A falta de planejamento estatal foi bastante criticada pela coordenadora da Aliança pela Água, Marussia Whatley. “Vários indicadores mostram que não estamos preparados para lidar com um mundo com menos água, de políticas publicas, de empresas e de sociedade”, disse. Segundo ela, mesmo com a crise ainda presente, o governo paulista não criou nenhum plano de contingência e está apenas empurrando o problema para frente, enquanto a população não é informada com transparência sobre a real dimensão do problema.
Mas o evento trouxe também um bom exemplo em gestão pública. O secretário de Meio Ambiente da cidade de Extrema, Minas Gerais, Paulo Henrique Pereira, relatou a experiência da cidade com o Projeto Conservador de Águas, criado em 2005 com objetivo de manter a qualidade dos mananciais através da incorporação de agricultores nos trabalhos de recuperação de matas, redução da poluição e difusão do conceito de manejo integrado de vegetação, por meio de Pagamentos por Serviços Ambientais.
O projeto conseguiu de forma bem sucedida garantir o abastecimento de água limpa para a população da cidade e evitar que ela sofresse enchentes ou secas, de forma simples e barata. “A maior represa do sistema Cantareira tem uma área de 5 mil hectares. A área de drenagem que leva a água para esse centro de 5 mil hectares é 100 mil hectares. É muito melhor fazermos uma ação para manter a água reservada nos 100 mil hectares, do que fazer uma ação pontual em apenas uma represa, um barramento”, afirmou.
Setor privado
Durante a apresentação, os painelistas também refletiram a respeito da importância de engajar as empresas em práticas sustentáveis, alegando que elas tem mais a ganhar do que perder ao mudarem seus processos, pois garantem matéria prima e têm possibilidade de aumentar a produtividade.
O diretor de desenvolvimento de novos negócios da AES Tietê, Flávio Bagnara Júnior, exemplificou claramente como as mudanças na natureza, no caso, a crise hídrica, tiveram pressão negativa sobre os negócios da companhia. “Nosso fluxo de caixa, nossa geração de renda vem da água. A gente precisa da água para gerar o nosso salário. Esse ano foi muito difícil, a gente sentiu na pele a dificuldade com a água. Nosso lucro foi corroído pela falta de água, como todas as empresas do setor”, disse.
Questionado se não seria mais eficiente investir em conservação de florestas de modo a garantir a vazão de água para rios e reservatórios, ele afirmou que é preciso “traduzir o problema em números que apoiem as tomadas de decisão nas empresas”.
Texto publicador originalmente no site da revista Página 22
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