Comentário Akatu: Pequenas mudanças nos hábitos cotidianos de consumo de cada indivíduo são essenciais para a transição para um estilo de vida mais sustentável. Mudanças no simples ato de se alimentar, por exemplo, podem gerar bons frutos neste sentido. Adotar como critérios para a compra não só o preço, mas também a qualidade, a origem, as informações sobre os impactos sociais e ambientais causados pela empresa fabricante, pode trazer grandes benefícios para a saúde, para a sociedade. Sob outra perspectiva, tais decisões também podem ser consideradas instrumentos de pressão política em prol de modificações no modelo atual de produção e consumo de alimentos das sociedades chamadas “mais desenvolvidas”, como evidenciou o debate entre especialistas realizado recentemente na UERJ e comentado nessa notícia.
Comer como ato político. Esta ideia foi mobilizadora do debate sobre os conflitos de interesse na relação público e privado/comercial na área de alimentação e nutrição que movimentou um dos auditórios da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) na primeira sexta feira de fevereiro (01/02). O convite aos professores Fátima Portilho e Renato Maluf – ambos da Pós Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) – foi realizado pelo Coletivo de Desdobramentos do World Nutrition Rio 2012, seminário internacional de nutrição realizado no ano passado. Luciene Burlandy, da UFF, foi a moderadora da mesa que comentou as palestras proferidas em 2012 – reapresentadas em vídeo – por Vanessa Schottz, da FASE e do Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e Tim Lobstein da Associação Internacional de Estudos contra a Obesidade (IASO).
No vídeo, as duas falas apontaram tentativas de resistência da sociedade ao modelo de produção de alimentos atual. Este, segundo os palestrantes, não favorecem a saúde. Vanessa exemplificou isto com a redução da variedade de alimentos disponíveis e as mudanças nos hábitos alimentares a partir da oferta e da propaganda, que desvaloriza produtos locais. “Há muita coisa entre a produção e o consumo e isso vem sendo invisibilizado. Revertemos isso, por exemplo, encurtando distâncias, estimulando compras públicas da agricultura familiar. Os nutricionistas são importantes nestes processos. Devem conhecer os movimentos políticos relacionados à soberania alimentar e ao direito humano à alimentação como a Articulação Nacional de Agroecologia, a Campanha contra os Agrotóxicos e pela Vida e a rede pela regulação da publicidade de alimentos”, afirmou a nutricionista, que também lembrou do Consea como “importante espaço político de ‘consertação’ da sociedade com o governo para construção de políticas públicas”.
Já Tim Lobstein, que apelida as empresas e alimentos que oferecem como “Big Snack” (grande lanche, em inglês), lembra que a alimentação é cada vez mais processada e que comida industrializada tem como característica substituir refeições. Ele alertou que as companhias dizem produzir a maior parte dos alimentos que consumimos junto aos governos, mas que esta produção, na verdade, ainda está a cargo da agricultura familiar. Lobstein fez cinco ‘recomendações’ ao Brasil, alegando que aqui não passa de 30% o percentual de comida proveniente do que chama de “Big Snack”, aumentando o poder da população de “domar” a indústria. Entre estas medidas inclui controle público dos alimentos comprados pelo estado e regulação da publicidade de alimentos, especialmente aquela dedicada às crianças.
O “sabor” da palestra ficou pelas perspectivas distintas tomadas por Fátima e Maluf como entradas para o tema. Ela buscou “extrapolar a esfera estadocêntrica e institucional usualmente adotada nas sociedades contemporâneas no debate sobre o campo político da alimentação”, investindo na abordagem sobre o papel do indivíduo/consumidor. Falando a partir da perspectiva dos estudos do consumo, a pesquisadora flertou com a possibilidade das escolhas tornarem o consumidor em cidadão. Já Maluf interpelou qualquer abordagem que não tomasse em conta as distinções entre os atores sociais que “constituem um campo pleno de tensões e conflitos”. Na opinião do professor, “nenhuma questão no Brasil pode ser discutida se não levarmos em conta a monstruosa desigualdade” e “comer como ato político é questionar seus determinantes”.
O consumidor que escolhe
A palestra de Fátima Portilho procurou sobrepassar uma série de questões consideradas por ela como “as abordagens tradicionais” do tema alimentação e política, como as políticas agrícolas e de segurança alimentar e nutricional. Buscou ater-se ao tema do consumo, evitando a abordagem que crucifica “o consumo moderno e seus males”. Explicou que seu interesse é compreender o consumo e as escolhas dos consumidores por acreditar que este pode ser “um novo campo político e politizador do ato de comer”.
Neste sentido, considera as várias formas de aquisição e outros atos cotidianos, por exemplo, o modo de ingestão dos alimentos, como centrais para que alimentação possa ser um ato político. Segundo ela, já se vislumbra em muitas partes do mundo a articulação entre escolhas do campo individual com experiências políticas. Na opinião da professora, este fato deve ser considerado como “processo” e está relacionado aos novos repertórios de ação política da sociedade contemporânea e à busca de novas formas de agir sobre a esfera pública que acabam por serem “aproximadoras entre consumidor e cidadão”.
Os exemplos citados destes movimentos são os boicotes – onde se encontram também os vegetarianos que, por diversos motivos, deixam de comer carnes boicotando este mercado; os “buy”cotes – termo sem tradução, derivado do inglês, para designar quem passa a adquirir algo por questões políticas; e o consumo por redes de comércio justo e grupos de consumidores, como a Rede Ecológica no Rio de Janeiro em que consumidores se organizam para comprar direto do produtor.
A pesquisadora afirmou que a academia ainda carece de dados empíricos sobre estes movimentos. E acredita na necessidade de instalar uma nova agenda de pesquisa que englobe um conjunto de questões. Entre elas, destacamos: Por que (e por que não) indivíduos percebem seu papel como consumidores?; Quais tensões e problemas surgem diante do ideal de politização do consumo?; Quais especificidades há no ambiente brasileiro?; Que limites temos nesta abordagem – vamos mudar o mundo com consumo político?
Ao responder a dúvidas da plateia, Fátima ressaltou que há baixa dinâmica de participação no país, o que levaria à ação via consumo a níveis baixos diante do esperado. Além disso, destacou que a lógica de pensar alimentação e política pelo via do consumo não deve ser tida como individualista, visto que consumir é também um ato cultural. Sendo assim, é pautado coletivamente. Ela pondera que boicotes, por exemplo, costumam ser lançados por grupos políticos, ONGs, etc. Além disso, diz que a cultura convenciona o quê e como comer. “O comer é tudo menos autômato. O consumidor não é um idiota. O consumidor também quer ser cidadão, como ensina Canclini, não é manipulado, por maior que seja o poder das grandes corporações do sistema agroalimentar”, afirmou.
“Consumo como ato político deve tratar do acesso”
Renato Maluf, que já foi presidente do Conselho Nacional de Soberania e Segurança Alimentar, defendeu uma abordagem ‘sistêmica’ ou ‘multidisciplinar’ da relação entre alimentação e política, que inclua o consumo, mas onde ele não esteja como único elemento. Economista, Maluf descreveu o aparecimento do consumidor e do consumo na teoria econômica e afirmou a ideia de “consumidor soberano” como “enganosa em amplo sentido”. Ele argumentou que o consumo é realizado sob efeito de determinantes econômicas e sociais, que escolhas são relativas e que exercer o papel de consumidor depende dos instrumentos acessíveis aos grupos e indivíduos.
Além disso, questionou: “Até que ponto os consumidores, quase sempre preocupados com a segurança dos alimentos no sentido da inocuidade do seu consumo, são capazes de chegar a uma visão crítica sobre as estruturas de produção e distribuição? Até que ponto podem enxergar que por trás dos rótulos há relações sociais e de poder?”
Na opinião dele, o tema do consumo tem duas entradas para debate hoje. Uma, a da saúde, de alimentar-se para uma vida saudável. A outra seria a dos direitos do consumidor – relacionado, por exemplo, à rotulagem. “No entanto, não é próprio da sociedade brasileira uma cultura de direitos, e essa nova abordagem ainda é complexa. Muitas vezes a referência são “os meus direitos” e não “os direitos humanos”, então não é clara ainda a relação do direito do consumidor com a do direito humano à alimentação”, destacou.
O acesso, para Maluf, ainda é um ponto central no debate sobre alimentação e política no Brasil. Foi categórico ao dizer que “para não se tornar veleidade de classe média, consumo como ato político deve tratar do acesso”. E aí é fundamental falar de acesso a quê – ele lembrou o ex-presidente Lula afirmando que “faminto comeria até a língua se não estivesse presa” para criticar a ideia de que qualquer comida, independentemente da qualidade, resolve o problema. Neste sentido, comentou brevemente sobre as ações do programa Brasil Sem Miséria. Elogiando a iniciativa, não deixou de criticar a imposição de metas que provavelmente acabam por obscurecer o debate e se sobrepor a questões que, se o assunto não fosse miséria, seriam consideradas importantes, como a qualidade dos alimentos, sua origem, os atores envolvidos em seu fornecimento. “O fato é que me refiro a isso porque comer como ato político é questionar os determinantes do consumo de alimentos e um certo padrão no consumo alimentar”, concluiu.
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