O debate sobre a seca antológica que São Paulo vem vivendo inicia agora um novo capítulo, definido pelo fim da época de chuvas em abril. Elas não vieram. O Sistema Cantareira, que abastece mais da metade da região metropolitana, continua correndo o risco de não ser capaz de seguir abastecendo. E o comitê anticrise, que monitora a seca, começa a mostrar preocupação com uma nova estiagem no final do ano, depois de termos vivido o verão mais seco em 84 anos.
Sem mascarar a gravidade da crise, há nela uma grande oportunidade de “desautomatizar” o consumo de água, com o engajamento cidadão de todos a uma nova postura, mais consciente, no uso desse imprescindível recurso.
O fenômeno do clima extremo, consequência do aquecimento global, consagra a imprevisibilidade como a nova regra do jogo. Sabia-se que o clima seria alterado, mas não havia como prever como essa mudança se distribuiria pelo planeta. Hoje, os cientistas apontam que, quando houver chuvas, elas poderão ser de tal forma intensas que poderão provocar inundações até mesmo em locais antes inimagináveis. E, quando houver secas, é possível que se prolonguem por períodos tão extensos que as consequências podem ser trágicas. Com isso, não se pode mais usar os dados históricos para prever as chuvas.
Precaução passa a ser a palavra-chave, tanto por parte dos governos quanto de cada um de nós. O poder público, tocado pela lógica convencional de um ano eleitoral, fez uma aposta que parece insensível à seriedade da atual seca em São Paulo. Talvez tenha informações que não chegaram ao conhecimento geral. Ou talvez não compreenda a real dimensão do problema.
Segundo dados divulgados no início de março, o governo estadual diminuiu a vazão do Sistema Cantareira de 31 mil para 27,9 mil litros por segundo. A média de abril foi ainda menor (23,9 mil litros por segundo). Embora haja menos água chegando aos cidadãos, o governo recusou-se a falar na possibilidade de racionamento, ainda que a Sabesp tenha admitido que essa hipótese não esteja descartada. Causa-me estranheza que a vazão tenha sido reduzida sem que se tenha garantido, de alguma forma, uma redução no consumo da população. Parece contraditório.
Com o consumo no patamar atual, se não ocorrerem chuvas em volume significativo, a água do Sistema vai acabar, isso podendo acontecer tão cedo como julho ou tão tarde quanto novembro. Não quero imaginar as consequências disso. O que aconteceria com os negócios? E com o cotidiano das famílias? Parcela da população afetada pela falta de água teria de deixar a cidade?
É nesse cenário que nós, cidadãos, podemos mostrar força sem aguardar uma solução do divino ou do governo – ainda que fosse obrigação dos governos tomar medidas preventivas e preparar a população para situações como a da crise atual. Segundo os cálculos do Akatu, com uma redução de 20 minutos na utilização diária individual de água, reduziríamos nossa preocupação e manteríamos o Sistema Cantareira atendendo as necessidades de água por mais tempo.
É verdade que as residências representam só 10% do uso total da água, mas é dentro de casa que começa a conscientização sobre a importância do cuidado no seu uso. Algumas medidas de redução do consumo são simples, tais como, fechar a torneira ao escovar os dentes, usando apenas um copo para os enxágues; no chuveiro, coletar em um balde a água que corre ociosa até esquentar, aproveitando-a para outras finalidades; diminuir o tempo de banho, hoje o maior gasto de água dos paulistanos.
Um segundo grupo de ações requer um pequeno esforço inicial. Em residências com caixas d’água acopladas aos vasos sanitários é possível reduzir a água da descarga colocando no fundo da caixa uma garrafa PET com 2 litros de água. Isso fará com que, se antes eram consumidos 10 litros por descarga, o sistema passe a captar e usar apenas 8. São 2 litros de água economizados a cada descarga.
Há um terceiro grupo de medidas que envolve uma mudança mais atenta de atitude. A maioria das pessoas lava a louça com a torneira aberta. É possível uma grande economia enchendo-se três recipientes com água: no primeiro, mergulha-se a louça suja e ensaboa-se; em seguida, fazem-se dois enxágues. Outro vilão do consumo de água é a máquina de lavar roupas. Ao ligá-la somente com sua capacidade máxima, usa-se a menor quantidade de água possível.
Mais difícil, e possivelmente despertando maior resistência, é nos perguntarmos se de fato é necessário lavar as nossas roupas a cada uso. Não podemos vestir aquela peça mais uma vez? Da mesma forma, é preciso lavar o carro em uma situação como a que vivemos? Uma imagem terrível que me vem à mente é a de pessoas sofrendo com a falta de água, andando em veículos reluzentes e vestindo roupas lavadas a cada uso.
Um último bloco de ações pede investimento financeiro. Inclui-se aí a instalação de redutores de vazão antes do bocal dos chuveiros ou a troca por aparelhos ou bocais de menor vazão. Pode-se também instalar um sistema de descarga com fluxos diferentes para resíduos líquidos e sólidos. Ou, para quem vive em casa, instalar sistemas de tratamento e reuso da água.
Não é preciso, e nem podemos, assistir passivamente à aproximação dessa tragédia anunciada do fim da água de São Paulo. Há um grande poder em nossas mãos para mudar a realidade não apenas em meio à crise, mas também pensando no futuro, já que, na era do clima extremo, nada será como antes. Surge diante de nós a oportunidade de olhar os recursos naturais, que agora sabemos finitos, com outros olhos. Não mais do ponto de vista de uma sociedade de consumo, mas de uma sociedade de bem-estar, na qual o uso consciente e parcimonioso da água será vital para a nossa sobrevivência como espécie.
Helio Mattar é PhD em Engenharia Industrial pela Universidade de Stanford e idealizador e diretor-presidente do Instituto Akatu.