loader image
18.03.15 às 11:57

O desconforto da busca pela sustentabilidade

Estamos num tempo de avaliar o sentido da coragem. A coragem de ter mais trabalho por estar consciente e perceber que passamos as últimas décadas criando confortos insustentáveis!
compartilhe
FacebookTwitterLinkedInWhatsAppEmailCopy Link

Crédito: Creative commons

 

Comentário Akatu: as crises de água e de energia que estamos vivendo não são apenas resultado da seca. São resultados de décadas de desperdício em uma sociedade que considerou a água como um recurso de disponibilidade infinita e não se preocupou com o seu uso. O artigo abaixo fala da importância de sair da inércia. Precisamos promover uma mudança dos hábitos das pessoas de forma permanente, pois não há nenhum outro caminho para a sociedade que não passe pelo consumo consciente.

 

Vou começar falando de minha primeira ida à Inglaterra quando tinha uns 24 anos de idade. Eu estava fascinada por viajar e conhecer novas culturas, novas formas de viver, de comer, de se divertir etc. Nada me escandalizou mais do que tentar lavar a louça numa casa inglesa. Sempre fui participativa e sempre foi impossível estar numa casa, jantar ou almoçar e não participar do desmonte da cena. Sou sempre a primeira a ajudar e assim cheguei na cozinha para lavar a louça. Normalmente, como havia feito por toda a vida, abri a torneira e comecei a ensaboar um prato debaixo da torneira aberta. Conversando descontraída fui percebendo olhares e de repente a dona da casa pegou a bacia que estava em cima da pia ao lado e colocou dentro da pia. Fechou a torneira, depois de encher a bacia. Não entendi muito bem o sentido do ato. Alguém me chamou e fui atender. Quando voltei, o impacto! A dona da casa continuou minha tarefa. A torneira não era usada como eu sempre havia feito até ali. A louça era lavada dentro da água da bacia, que só era trocada depois de muito tempo. Minha reação foi imediata: não comeria mais naqueles pratos tão pouco limpos! Não podia entender o porquê de lavar a louça daquela forma.

A partir daquele momento comecei a reparar que os apartamentos não eram limpíssimos como os nossos, não haviam empregadas domésticas e tudo era feito de forma prática, rápida, com produtos de limpeza diferentes, esponjas e vassouras diferentes. Para uma jovem tudo era motivo para fazer perguntas. Tomei coragem e fiz as várias perguntas, que dançavam pela minha cabeça, para uma amiga mais próxima. A resposta me faz pensar até hoje:
– É… vocês no Brasil nunca passaram por uma guerra e acho que por isso vivem como se tudo fosse abundante e não fosse faltar. Aqui aprendemos o valor da água, da energia, por que durante muito tempo todo o conforto nos fez muita falta! Aprendemos a economizar, a não desperdiçar.

Pois bem, nos últimos tempos a falta foi tomando concretude em todas as partes do planeta. Hora falta, ora excede. Falta calor, excede calor. Falta água, ou acontecem inundações. Nada disso deixou de ser anunciado pelos cientistas desde meados da década de 60. Não ouvimos, não acreditamos. Muitos ainda não acreditam. Para mudar é absolutamente necessário primeiro tomar consciência. Isso pode acontecer em segundos, ou pode levar toda sua vida. Depende de alguma informação conseguir chegar a sua consciência. Por exemplo: água é um recurso finito. Você pode ter ouvido isso mil vezes, mas seu stress de atenção favoreceu que essa informação entrasse e saísse de você sem que chegasse a sua consciência. Não ganhou significado e portanto não vai ganhar significância na sua vida. Não mudará seus comportamentos cotidianos com relação a água. Não vai pegar bacia para lavar a louça.

Mas, numa grande crise hídrica, que de forma surpreendente te mostra que a água não nasce dentro da torneira, e que não adianta abri-la que o líquido precioso não jorra, (aí você já começa a entender que ele é precioso) você poderá ter um insight (nada mais do que uma luzinha que toca você lá dentro do cérebro, na sua mente) que mudará todo seu comportamento cotidiano com relação à água. Melhor ainda será uma divulgadora da água como recurso finito. Poderá até ficar bem chata para seus amigos por algum tempo. Assim será com tudo que você for transformar que virou hábito. Dá trabalho, porque você vai ter que pensar por muito tempo, fechar a torneira das pias no banho, para escovar os dentes, para tomar banho. Vai demorar para que tenha respeito à água.

Coloque essa percepção em ação para todos os convites que você tem recebido nos últimos anos para mudar comportamentos! Dá um trabalho danado aprender a reciclar, mudar hábitos alimentares, aprender que você será a melhor pessoa para preparar seu alimento, deixar os restaurantes a quilos, as latinhas e caixinhas para trás, perceber o açúcar e a diminuição dele no seu metabolismo e até na sua aparência. Leva-se tempo para mudar, como leva-se tempo para tocar um instrumento, construir uma casa, fazer um filho etc.

Há uma exigência de coragem, determinação, paciência com suas falhas e esquecimento, enfrentamento da preguiça e perseverança. Andei de carro a vida inteira como agora de ônibus? Deixei sempre as luzes acesas e os aparelhos na tomada, como me tornar consciente nos meus passos diários? É no meio desses desafios que vão nascendo seres comprometidos com a sustentabilidade. Tarefa para corajosos.

Ponha isso na dimensão das empresas. Nos produtos testados e aprovados por anos e anos e que de repente se percebe o mal que fazem. Aos procedimentos de produção, tão mecânicos, e tão difíceis de transformar, às vezes comportamento de milhares de empregados. Um produto que produzimos automaticamente como a corrupção, nem estou falando das gigantes que estamos conhecendo, mas das pequenas que cada um de nós cometeu com o jeitinho que nos caracteriza, como eliminar? Não é fácil, é tarefa para corajosos. Dá trabalho ser sustentável. E sem dúvida essa é a tarefa para as empresas, que avançaram no expor conteúdos, conceitos. Para nós que falamos demais no tema. O desafio é sair do discurso e enfrentar a preguiça, o desafio para lucrar de outra forma, abrir mão do mundo confortável insustentável que inventamos nas últimas décadas e passar a ter o bom trabalho, aquele que é parceiro da natureza.

Por isso não acredite quando uma pessoa ou uma empresa se declarar sustentável. Não perceba isso como uma culpa para você que só começou, ou pensa em começar. Não há sustentabilidade hoje. Existem pessoas e negócios que resolveram andar por essa nova estrada e com coragem. Temos um jeito de viver para reinventar.

 

Artigo publicador originalmente no site Plurale

* Texto-base da palestra de Nádia Rebouças, consultora em Sustentabilidade e Comunicação para a Transformação, no IV Fórum Internacional ABA de Sustentabilidade.

compartilhe
FacebookTwitterLinkedInWhatsAppEmailCopy Link

Veja também